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Confissões de uma Viciada, por Simone Bitar

Tudo começou como uma curiosidade.Quis provar para ver como era. Sentir qual o barato e descobrir por que tanta gente vem se entregando à prática ao longos dos anos.Inclusive na minha família. Há rumores de que minha bisavó já era caída na coisa.Sim, eu tinha que saber que a predisposição familiar contaria muito. Tinha que ter tido mais cuidado. Tinha que ter ouvido os outros que me alertavam: começar é fácil e rápido, difícil é largar depois. Foi assim. Uma tarde experimentando, aquela maldita tarde quando minha ruína teve início. Agora estou aqui, confessando o inconfessável. Meu nome é Viviana, tenho 29 anos e sou viciada. O primeiro contato foi tímido. Minha tia-minha própria tia! Veio me mostrar como era. Não consegui. Meus dedos se embaralharam, não foi legal. Achei que aquilo não era para mim e deixei para lá. Deveria ter seguido minha intuição. Deveria ter ficado de fora. Mas tempos depois, fui em busca de uma profissional. Ela sabia tudo, como fazer, onde pegar, onde conseguir o material. Precisei pagar para ela me mostrar como era. Aquela senhora gorducha, rosada e sorridente. Como as aparências enganam. A gente nunca sabe. O vício não tem uma face. Nem sempre há marcas roxas pelos braços ou vermelhidão no olhar. Aprendi a fazer a correntinha. Aprendi cada um dos pontos básicos. Até trabalhar em círculos aquela mulher me ensinou. Depois da primeira, da segunda, da terceira tentativa meus dedos não mais embaralhavam. A agulha bailava no ar com graciosidade, o fio de lã corria solto entre minhas mãos que se moviam primeiro devagar, depois rapidamente. E os olhos... Ah, os olhos. Fixados naqueles pontos, pupilas dilatadas, sem piscar. Foco. Naquela noite, tive pesadelos. Sonhei que eu tentava fazer uma blusa enquanto alguém, na outra ponta, desfiava. Acordei suada. E, finalmente, me dei conta do meu erro. Mas era tarde... Quando menos esperava, o vício tomou conta da minha vida. Eu não tinha vontade de fazer outra coisa. Precisava estar o tempo todo em contato com a agulha. Precisava sentir o novelo no meu colo. Meus dedos imploravam. Dormia pensando no que fazer no dia seguinte, mal acordava e já buscava o material. Parei de ir em festas. Parei de encontrar os amigos. A geladeira estava vazia, tirando a garrafa de leite vencido. Não queria ir ao supermercado. Sabe quanto meu trabalho iria evoluir no tempo em que gastaria comprando mantimentos? Esperando na fila? Só pensava nisso. De repente, comecei a levar o material para onde quer que eu fosse. Não havia mais como esconder. Passei a usar em público. No ponto de ônibus. No parque. Até em frente de crianças. Não havia vergonha, não havia remorso. Só havia um pedaço de lã trabalhada que em breve viraria uma bolsa ou uma blusinha ou um gorro com orelhas. Meu marido tentava me ajudar. "Larga isso, vamos dormir". "Vamos ver um filme". "Estamos atrasados para a reserva no restaurante". E eu dizendo "já vou, é a última fileira, prometo". "Só mais esse ponto". Nunca era só mais aquela fileira. Ou só mais aquele ponto. A casa cada vez mais bagunçada. Camada de pó acumulando em cima da cômoda, debaixo da cama, sobre o criado-mudo. A gata cada vez mais carente. Querendo atenção. Mas nem os miados me faziam tirar os olhos do que eu estava fazendo. Parava só para comer. Para tomar banho. Todas as outras atividade pareciam tão sem graça quando comparadas ao vício. Pensava: "tudo bem, vamos andar pelo bairro, mas no final eu não vou ter um cachecol para usar". Comecei a pensar só na compensação. No que resultaria aquilo. E se não resultasse em nada, qual o propósito? Passei a falar em gírias, a usar termos técnicos. E passei a buscar cada vez mais material. Ah, o submundo. Os traficantes de novelos. Eles fazem de tudo para segurar você. Primeiro mostram um fio de lã, de acrílico talvez. Para ir fisgando aos poucos. De repente, lá vem eles com algodão puro tingido naturalmente, com cashmere, com lã de alpaca peruana. Fios com brilho, com pelinhos, com texturas. Cada vez mais no fundo do poço. Pedia para experimentar um pouquinho. Pegava o novelo e passava no pescoço. É assim que as viciadas fazem, para ter certeza de que não vai pinicar. Então, o próprio vício começou a ser atrapalhado pelo vício em si. Explico: enquanto fazia o casaco, pensava no poncho que faria depois. E largava o casaco para começar o poncho, "só para ver se sei fazer o ponto". Daí tinha um casaco e um poncho não terminados. O que não me impedia de tentar o broche de coração, ou o colar de flor. O mundo inteiro está cheio de crocheteiras. Esse vício não nos prejudica em nada,mas é o único vício que nos dá vontade de viver bem e melhor para aprendermos mais pontos e técnicas novas a cada dia...rsrs Vício saudável para a alma. E você?? Também é uma viciada??? Beijos carinhosos em todos e fiquem com Deus. Simone Bitar
FELIZ DIA DO ARTESÃO MINHAS COMPANHEIRAS DE AGULHA.

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